Making of de “Reparos” – 01 – Como Começar e Estilo

Making of de “Reparos” – 01 – Como Começar e Estilo

Vitrine do Making of de "Reparos"

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Ricardo: Olá, senhoras e senhores, eu sou Ricardo Alexandre e esse é o primeiro episódio da série de podcasts sobre o álbum “Reparos“, o álbum novo do Brão Barbosa, o terceiro álbum de Brão Barbosa, “Reparos“, e essa aqui é uma série que a gente fez pra contar os bastidores da produção desse álbum em quadrinhos, do mineiro Brão Barbosa.

Brão: Sim, sou eu!

Ricardo: E também aqui com a gente na mesa está Paulinho Degaspari. Tudo bem com o senhor, Paulinho Degaspari?

Paulinho: Olá!

Ricardo: É um prazer estarmos nós três aqui juntos, em trajes sumários, (risos) em volta dessa mesa, pra falar um pouco de como é que foi a construção desse álbum que já está à venda no site braobarbosa.com/reparos. Uma produção independente de Brão Barbosa.

Paulinho: Bom, só pro pessoal saber, eu aqui, o Paulinho, eu sou amigo do Brão, por isso que eu estou aqui. Eu fui convidado… O Ricardo é especialista, especialista em tudo…

Ricardo: Eu estou aqui pelo cachê, né?! Só! (risos)

Paulinho: Ricardo é jornalista, foi criado com quadrinhos e tal. Eu fui ter mais contato com quadrinhos na idade adulta. Quando criança, Turma da Mônica, pouca coisa de Disney, depois eu fui ter contato com outras obras, principalmente graphic novels…

Ricardo: Com os presentes de aniversário que a gente te dava, né, Paulinho?!

Paulinho: Exatamente! Ganhei um do Brão, ganhei um do Ricardo! (risos) Exatamente! (risos) E assim, eu sempre curti muito ler, mas não necessariamente quadrinhos. Então assim, eu faço aqui o papel da pessoa que não está tão familiarizada com esse mundo. Então algumas perguntas que eu vou fazer vão ser meio nesse sentido.

Ricardo: É o Boris Casoy no Oscar, né? (risos)

Paulinho: Isso! Ou a Glória Pires, né? Que não tem nada a acrescentar sobre isso. Mas pelo menos pergunta eu vou saber fazer. Espero.

Ricardo: Muito bem! E essa série de cinco episódios aqui do podcast de “Reparos” a gente vai falar de assuntos que explicam um pouco da produção de “Reparos“, mas que também sirvam pras pessoas que tem interesse de como se faz uma HQ, uma história em quadrinhos. Talvez não tão boa quanto “Reparos“, mas a gente, né?! (Risos)

Brão: A gente espera que não, né? (risos)

Paulinho: Elas podem tentar chegar lá, né?

Ricardo: Exatamente! Nesse primeiro episódio a gente vai falar um pouco do que se faz antes do começo do trabalho mesmo, os primeiros passos pra se botar uma história em quadrinhos de pé. E conta pra gente, Brão, o “Reparos” na verdade, ele surge de quando e de onde veio a fagulha inicial pra esse teu novo álbum?

Paulinho: Mas antes de você responder, é bom lembrar que, esse episódio contém spoilers, né? Esse podcast contém spoilers…

Ricardo: Essa série toda, né? É um estraga prazer!

Brão: É um making of, né? (risos)

Paulinho: Então se você não leu o livro ainda, não continue agora. Leia o livro.

Ricardo: É, pára agora…

Paulinho: E depois você vem pra ouvir aqui a inspiração e como que foi a história real por trás da ficção.

Brão: É, e no site que o Ricardo mencionou tem tanto a opção da pessoa comprar o livro, como até baixar o arquivo digital lá. Então não tem desculpa, né?

Ricardo: É muita moleza, né? (risos)

Brão: “Reparos” é baseado no relacionamento que eu tive com meu avô materno. A gente era bem próximo, apesar de que, ele era um sujeito bem peculiar, assim. Então as pessoas que não o conheciam tão profundamente, tinham certo receio de aproximação com ele, porque ele era bem fechado. Então ele causava, às vezes, certo medo em algumas pessoas. Só que conosco, que éramos mais próximos dele, ele era, do jeito dele, da forma dele, um sujeito bem afetuoso e bem peculiar.
Ele era um cara que em todo momento ele estava tentando se atualizar. Ele começou desde cedo com o conhecimento de eletrônica, de elétrica e fotografia… Até o final da vida dele, ele continuava mexendo com computador, com a fotografia dele… Inclusive, por causa dele que eu trabalho hoje com comunicação, com imagem, foi ele quem me ensinou a mexer no Photoshop, por exemplo.

Paulinho: Olha só…

Ricardo: Que demais!

Brão: É, eu ia na casa dele e ele chegava: “Ôh, meu filho, vem cá procê vê. Tive que formatar meu computador, comprei essa placa e esse HD novo e tal” e eu mesmo nem entendia muita coisa… (risos)

Paulinho: E assim, ele migrou bem do analógico pro digital?

Brão: Cara, migrou.

Paulinho: É?

Brão: Porque ele nunca ficou desatualizado. Ele sempre estava se mantendo a par aí das novidades. E aí, no final da vida dele, ele se adoentou e teve que se internar. E nesse período eu já não morava lá na minha cidade natal, que é Governador Valadares, no interior de Minas. Eu já estava aqui em São Paulo, em Jundiaí. E meus familiares, meus tios, minha mãe me mandavam fotos dele no hospital pra gente estar a par dos acontecimentos e em um determinado momento ele passou a estar inconsciente e aí mesmo assim eles continuaram me mandando fotos, então era um cara muito ativo na minha memória, porém na foto, um cara acamado… Então assim, na minha cabeça não fechava, entendeu?

Ricardo: Sim.

Brão: E aí no momento em que minha esposa e eu fomos visita-lo, quando eu vi ao vivo, aí sim que as coisas não fechavam mesmo. E aí eu quis ter uma lembrança dele, então eu quis tirar uma foto. Mas aquele corpo acamado ali não me dizia muita coisa, sabe? Porque ele, como eu disse, era um cara muito ativo, e tal. Então o que mais me pareceu próximo ao avô que eu conhecia era o monitor cardíaco que estava ao lado dele. Que obviamente estava marcando a movimentação do coração dele, então os últimos sinais de vida dele ali, e ligado com a máquina, com elétrica, eletrônica, algo que sempre simbolizou bastante pra mim a vida dele. Então registrei naquele momento o monitor cardíaco em operação, e foi a última memória que eu tive dele.
Meses depois eu tive o interesse de fazer um quadrinho, contar o meu relacionamento com ele e foi a partir dessa foto, que é a foto que encerra a história, que veio “Reparos“.

Ricardo: Então na verdade, Brão, o que que aconteceu? Você registrou mais o espírito da tua relação com o teu avô do que necessariamente o teu avô. Talvez seja o avô que tinha no teu coração, né?

Brão: Isso, isso mesmo! Tanto que eu venho anunciando que a história, ela é baseada, né? Eu alterei vários aspectos. Tanto que não tem essa ligação familiar entre os personagens. A relação de um senhor homem com uma garotinha, né? Então eu mudei vários aspectos pra que a história fluísse melhor ao meu ver.

Ricardo: Então, na verdade, a história começa num lampejo no teu coração, né? Essa série de podcast, é bacana dizer, que Brão Barbosa, num esforço de reportagem impressionante, né? (risos) Ele colheu depoimentos de vários especialistas, vários quadrinistas.

Paulinho: Sim!

Ricardo: E dispôs ao ouvinte do podcast aqui sobre os assuntos que a gente está tratando. Tem algumas pessoas que vão falar aqui pra gente como se deve começar uma HQ.

Cris Eiko: Normalmente a pessoa que começa sempre tem aquela ideia de fazer algo gigante, né? Uma graphic novel assim. “Ah, já vou começar contando aquele épico de trezentas páginas.”

Brão em off: Essa é Cris Eiko. Quadrinista e co-autora de “Quadrinhos A2” e da Graphic MSP do Penadinho ao lado do seu marido Paulo Crumbim. E autora de “Culpa“.

Cris Eiko: A gente começou fazendo quadrinhos de seis páginas pro A2.

Julia Bax: A primeira vez que eu fiz uma história, eu fiz uma história de seis páginas pra um fanzine junto com a galera que fazia aula comigo.

Brão em off: Julia Bax é autora de “Remy“, “Quina“, “Nina & Tomas” e muitos outros.

Julia Bax: Se você tem uma história de duzentas páginas, esquece essa história. Anota a ideia num papelzinho, guarda numa gaveta e esquece ela por enquanto. E começa com histórias de cinco páginas. Pra quem está começando, quem nunca fez um quadrinho, cinco páginas é bastante! Brigar ali com a composição, brigar com o desenho de cada quadro, não fugir da raia, não evitar fazer cenário… É sair da zona de conforto e fazer essas poucas páginas da melhor maneira que você conseguir. Aproveitar pra aprender porque eu acho que de todas as coisas que desenhista pode fazer, quadrinhos é a que mais puxa os limites. Porque pra você escrever uma história, você sempre vai ter que sair da zona de conforto. No meio da história vai ter alguém andando num carro e você nunca desenhou um carro, vai ter alguém batendo num dinossauro e você nunca desenhou um dinossauro… Aproveita isso! Pra aproveitar você precisa fazer uma coisa limitada alí, né? Pensa em cinco páginas, a próxima história vinte páginas, a próxima história quarenta, e assim você vai construindo confiança. E quando você chegar a fazer uma história grande, como foi essa da Nina, que é a primeira coisa grande mesmo que eu estou me envolvendo, que eu quero que tenha mil páginas, sei lá, de “Nina & Tomas” uma hora, você já vai ter confiança suficiente de você olhar um roteiro de cento e vinte páginas e falar assim: “Beleza, isso aqui vai demorar um ano e tudo bem”.

Lu Cafaggi: Se a gente olha de longe assim, uma pessoa fazendo quadrinhos, não parece que é uma coisa exaustiva. É uma pessoa sentada mexendo a mão um pouquinho só.

Brão em off: Lu Cafaggi publicou a Biografia de Bruna Vieira e ao lado do irmão Vitor, as graphics MSP da Turma da Mônica. Mas começou mesmo com a publicação independente “Mix Tape“.

Lu Cafaggi: Na nossa cabeça acontece tanta coisa, e é uma pressão tão grande. A gente conversa com umas partes muito sombrias assim da nossa cabeça enquanto a gente está ali sozinho, só dentro dela. É bem pesado. Nossa, mesmo tendo passado o dia inteiro só sentada um pouquinho assim, você está moída à noite. Parece que um caminhão passou em cima de você mesmo. Quando eu terminei o “Mix Tape“, por exemplo, eu lembro de estar muito cansada, mas o que me fez fazer o próximo foi achar que “Mix Tape” não estava bom e eu falei assim: “Não, então tá! Agora, o próximo eu vou fazer um quadrinho bom”. E foi assim com “Mix Tape“, foi assim com “Laços” também. Eu terminei as páginas pensando “Puxa vida! Isso está ruim! Nossa, gente eu tenho que provar pra todo mundo que eu mereço estar fazendo isso. Então o próximo livro eu prometo que vai ficar bonito!”

Ricardo: Você se vê um pouco nessa recomendação?

Brão: Ah, eu concordo totalmente. Porque você precisa fôlego, né? Pra terminar um quadrinho longo. Então, por exemplo, o meu primeiro que foi o “Jesus Rocks“. Eu acho que o esforço foi similar ao fazer “Reparos“, sabe? Porque é algo que você não está acostumado a fazer, é necessário uma disciplina incrível, que antes de fazer eu não tinha ideia que era necessária. Então o primeiro trabalho que eu fiz tem dezesseis páginas, mas o esforço necessário foi muito maior do que as primeiras dezesseis páginas do “Reparos“.

Lillo Parra: Quando eu sento pra escrever, eu escrevo três horas, faço uma pausa, como alguma coisa, venho e escrevo mais três horas. Eu tenho seis horas do dia que eu sento e escrevo.

Brão em off: Lillo Parra é roteirista de diversas publicações, sendo a mais recente, “La Dansarina“.

Lillo Parra: Sai, em dias bons, dez laudas. Em dias ruins, duas laudas. Independente do dia, essas dez laudas ou essas duas laudas, teve muito mais que seis horas por trás. Mas muito mais!

Ana Luiza Koehler: Fazer uma história em quadrinhos é um comprometimento.

Brão em off: Ana Luiza Koehler lançou “Beco do Rosário” depois de vários anos publicando para o mercado alemão e franco-belga.

Ana Luiza Koehler: É uma coisa assim que realmente exige bastante tempo e dedicação. Porque vai ter vários momentos em torno disso que tu não vai querer fazer, né? Não vai querer trabalhar naquele projeto, mas tu precisa completar. Tem que ter muita disciplina, eu acho. Primeira coisa, né? Então não é toda hora que a gente vai gostar de fazer, que vai ser legal não!

Paulinho: Mas Brão, quando a gente entrevista músico, a gente pergunta, né? “O que vem primeiro, a melodia ou a letra?” Agora pro Brão, o que que vem primeiro, numa criação de história em quadrinhos, no seu caso que desenha e escreve, o que vem primeiro, a arte ou o texto? Você quer chegar desenhando e a partir daí criar a história ou você vem com o roteiro fechadinho primeiro pra depois começar a desenhar?

Brão: Eu escrevo como se fosse passar pra outro desenhista fazer. Porque me conhecendo do jeito que eu conheço, eu sei que se eu deixar só subentendido ali, depois eu vou fazer algo diferente do que eu pensei na hora que eu estava escrevendo. Então eu tenho que detalhar o máximo pra que eu tenha menos elaboração na hora que eu estiver desenhando. Então eu tento descrever o máximo possível na hora do roteiro, pra que na hora do desenho eu não precise pensar tanto, a coisa vá fluindo mais naturalmente.

Paulinho: Então você descreve cenário, tudo que você espera quadro a quadro. É isso?

Brão: Eu descrevo tudo. Inclusive eu já vi roteiros de artistas que são roteiristas e o meu roteiro se assemelha bastante ao deles.

Paulinho: Entendi.

Julia Bax: Eu tento escrever como se eu não desenhasse.

Brão em off: Julia Bax novamente.

Julia Bax: Começa a partir de uma premissa, bem pequenininha, e vou desenvolvendo aumentando cada vez mais. Aí começa de uma premissa de uma frase, que seria no “Nina & Tomas” “menina que tem o braço possuído pelo ex-namorado” até criar um parágrafo, que descreve mais ou menos a história, o que que acontece naquela história, e vai aumentando até eu chegar no roteiro mesmo. Eu tenho um roteiro como se eu tivesse escrito pra um outro desenhista. O roteiro tem todos os diálogos já tudo pronto pra na hora que eu for desenhar eu já sei, “ah, ele fala isso, ou é uma piada, ou uma coisa séria, qual a expressão do personagem” e tudo mais. A hora que eu termino o roteiro eu sei que eu só vou ter que desenhar. Tem muita gente que desenha que gosta de ir desenhando e roteirizando ao mesmo tempo. Eu sinto que pode ser meio problemático, porque às vezes o que você escreveu lá na frente, afeta o que você desenhou no começo, né? Você pode ter uma ideia pro final em que você precisa inserir algum elemento no começo pra que aquilo seja usado no fim. Eu prefiro já ter tudo fechado.

Paulinho: Você já fez isso desde o “Jesus Rocks“? Por exemplo? Ou você foi aprendendo isso com o caminho?

Brão: O “Jesus Rocks” talvez tenha sido menos. Porque o texto original não é meu, né? É do Ariovaldo Jr.

Paulinho: Aham.

Brão: Acredito que naquela época eu tentei me enganar achando que na hora do desenho eu fosse ter soluções ali e tal. Mas, comigo pelo menos, não funciona assim. Se eu não tive a ideia da solução no momento que eu estou escrevendo, eu não vou ter na hora do desenho. Então eu gosto de estar com o roteiro bem redondo na hora de desenhar.

Ricardo: Olha, eu vou falar como um depoente que eu tive o privilégio de ver o roteiro ainda só letrinhas.

Brão: Exatamente.

Ricardo: Só letrinhas. Agora, eu fiquei intrigado com a tua resposta. Porque o sr. Ravid, ali no texto, ele é uma pessoa desproporcional corporeamente falando, né? Inclusive a primeira cena em que ele aparece na história ele é um monstro, ele é um gigante, ele é uma montanha, né? Então, parece que essa tua memória afetiva do teu avô era imagética, antes de você escrever. Ou estou enganado? Você tentou traduzi no roteiro o que já havia como imagem na tua cabeça, ou no teu coração e depois você retraduziu pro desenho. É fato ou ficção? (risos)

Brão: Não, é isso mesmo. Como o meu traço, ele não está muito perto do realismo, meu traço é bem cartum, ele é bem solto, vamos dizer assim, eu me dou a liberdade maior de exagerar nos aspectos que me interessam e que eu acredito que vão funcionar melhor na história. Então, o sr. Ravid, por exemplo, ele é baseado todo num espectro mais quadrado, mais truncado.

Paulinho: Mas é parecido com seu avô em algum aspecto?

Brão: Não. Fisicamente eles não se parecem não.

Paulinho: Anham.

Brão: Meu avô era bem mais franzino, bem mais frágil do que o sr. Ravid.

Ricardo: Queria que você falasse um pouco da diferença que você sentiu fazendo quadrinhos, fazendo roteiro sendo um homem feito, maduro, quase podre (risos).
Das tuas primeiras experiências como roteirista, tem a ver isso?

Brão: Ah, acredito que sim. Porque “Reparos” ele é bem diferente de “Feliz Aniversário, Minha Amada“, por exemplo, que tem um roteiro e desenhos meus também. Porque em “Feliz Aniversário“, é uma história totalmente ficcional, então…

Paulinho: Sério? Não tem nada lá…

Ricardo: Ah, conta pra nós!

Paulinho: Quem lia o livro, quem eu comentava, falava assim: “Não, o Brão deve ter algum probleminha lá, psíquico, alguma coisa escondida pra escrever uma história como essa”. (risos)

Brão: Não, eu já fui orientado excessivamente pra dizer que é totalmente ficcional.

Ricardo e Paulinho: (risos)

Brão: Mas é aí, por exemplo, “Feliz Aniversário” surgiu de uma conversa que eu estava tendo com a minha esposa.

Paulinho: Que medo disso! (risos)

Brão: Provavelmente eu tinha vacilado em algum aspecto em que nós tínhamos critérios diferentes sobre a gravidade daquilo que eu tinha feito. Eu achava que aquilo tinha uma intensidade muito menor que aquilo que ela estava dizendo.

Paulinho: Anham.

Brão: E aí surgiu da ideia assim: “carambra, ela está tão nervosa com algo que eu fiz que é tão simples… O que aconteceria se um dia ela me pegasse traindo? Ela ia me capar!” e aí eu falei: “bom, se ela fizesse isso, ela teria vários problemas judiciais. A não ser que ela conseguisse provar que ela era mais inocente que culpada”. E daí que surgiu a história.

Paulinho: Unhum.

Brão: Então foi desse lampejo de ideia e eu fui enxertando ali a história, fui elaborando a partir desses aspectos ficcionais.

Paulinho: Unhum.

Brão: Já no “Reparos” tem toda essa carga sentimental que o Ricardo comentou, e tal. Inclusive meu avô morreu num dia e ele já foi enterrado no dia seguinte. Então, a minha avó mesmo falou que queria fazer algo rápido. Então eu e meus primos que não moramos em Valadares, a gente não teve tempo de participar do velório. Então, pra mim, “Reparos” é o meu velório em relação ao meu avô.

Paulinho: Comparando o “Feliz Aniversário, Minha Amada” com o “Reparos“, você sofre o mesmo problema que o Shyamalan sofre com os filmes dele. (risos)

Brão: Olha a comparação do Paulinho… (risos)

Ricardo: Vamos lá! Estou gostando… (risos)

Paulinho: Porque assim, o Shyamalan criou aquela coisa de sempre construir roteiros e no final ter aquela explosão de cabeça e falar: “Meu Deus! E agora?” e cada filme a gente esperava essa explosão de cabeça, até que veio um filme que ele não fez essa explosão de cabeça. E você seguiu esse mesmo caminho, né? No primeiro tem um plot twist muito grande e todo mundo fica chocado. Já em “Reparos“, é uma história mais linear, mais emocional etal. Como é que foi trabalhar isso? Você se sentiu prisioneiro da primeira ideia ou trabalhou isso naturalmente?

Brão: Eu quero acreditar que não. Inclusive porque um amigo meu que foi leitor beta do roteiro, que não foi o Ricardo

Ricardo: Não foi.

Brão: Ele leu o roteiro e não gostou. Ele meu deu o feedback que não é o “Brão que ele conhecia”. Ele falou que esperava que no final da história os personagens se mutilassem, ou que tivessem um relacionamento afetivo bizarro entre o senhor e a garotinha… Que realmente não é o que eu estava buscando com a história. Estava muito longe disso. Mas apesar desse feedback, eu acredito que a história estava cumprindo o papel que eu determinei pra ela desde o início. Então eu dei segmento, tentei fazer esse mesmo trabalho nas divulgações: “Óh, é uma história baseada no meu relacionamento com meu avô” pra tentar desvincular dessa expectativa.

Ricardo: Agora, isso tem a ver também com o fato de você ter um estilo. Você está na tua terceira obra, é o teu primeiro álbum com “A” maiúsculo, digamos assim. Mas você já tem um histórico como quadrinista. E eu aprendi que estilo é uma mistura daquilo que a gente é com aquilo que a gente quer ser, né? Com as pessoas que a gente imita. E aí no final, nosso estilo acaba brotando porque a gente não consegue ser aquilo que a gente quer ser.

Edu Medeiros: Todo mundo tem isso, né? Todo mundo que começa a desenhar quer ter um estilo, uma coisa assim.

Brão em off: Edu Medeiros é co-autor de “Mondo Urbano” ao lado de Rafael Albuquerque e Mateus Santolouco. E é autor de “Neeb“, “Open Bar“, “Sopa de Salsicha” e muitos outros.

Edu Medeiros: Durante muito tempo eu fiquei nessa nóia. Quando a gente começou a produzir o “Mondo Urbano“, os guris tinham que me segurar porque eu queria mudar de estilo a cada revista. É difícil assim, cara, acho que a parada vem com o tempo mesmo. Estilo é uma parada que tu almeja chegar num ponto, que é o que tu quer que teu desenho chegue, e teu talento chega até metade disso. E isso acaba meio que sendo teu estilo, assim, né? Tu tentar alguma coisa e tu vai até onde teu traço, teu talento vai, né? Mas eu acho que é uma coisa que vem com o tempo, assim. O que funcionou pra mim é tentar me desvincular de referência, assim. Eu fico muito maluco com referência. Eu vejo um cara novo a toda semana e eu fico: “Pô, podia desenhar assim, podia desenhar assado”. Isso às vezes dificulta, né, cara? Te atrasa, né? O que funcionou pra mim é tentar me desvincular ao máximo, sabe? Às vezes eu pego um jeito que o cara faz uma orelha, um outro jeito que o cara faz a mão e tu vai meio que formando um Frankenstein, assim, sabe? E aí, a prática daquilo faz a parada ser mais fluida. Acho que o estilo acaba vindo daí. Já foi talvez um esforço muito grande, mas não é mais assim. Eu tenho uns amigos assim que sabem desenhar, mas que não conseguiram engrenar na coisa porque ficam nessa de esperar o momento certo, aquele momento em que meu traço vai estar bombando, sabe? Vai estar estourando a tanga pra começar. Mas não funciona, sabe, cara? Tu tem que tentar fazer o melhor que tu consegue naquele momento e no próximo tu tentar sempre melhorar, assim, cara. Sabe? Não dá pra tu ficar esperando o momento pra fazer a parada. Até porque é fazendo que tu aprende, que tu melhor, que tu dá uma evoluída, sabe?

Ricardo: Como você define o teu estilo? Visto que há uma expectativa em torno do que você deveria fazer e uma realidade que é o que você oferece, que é uma história mais afetuosa, uma história mais emocional, familiar, depois de obras sanguinolentas e terríveis? Você tem um rastro, né, cara? (risos)

Brão: Eu concordo bastante com o Edu, que inclusive é uma das minhas referências como traço. As referências que eu busco no desenho, que eu me inspiro, um dos nomes é o próprio Edu, o Hiro Kawahara, o Gustavo Duarte e o Skottie Young. São traços que eu acredito que estão muito próximos daquilo que traduz até a minha própria personalidade. Eu gosto de fazer histórias que por mais, talvez, finais tristes que tenham, que sejam histórias bem-humoradas, histórias que se alinham bastante com o meu perfil. Quando eu era mais novo eu tentava fazer desenhos mais realistas e eu via que era muito truncado. Não era exatamente aquilo que eu queria passar. E eu acho que quanto mais eu fui me preocupando com a mensagem em si do desenho e menos nos aspectos estéticos “gregos e perfeccionistas”, vamos dizer assim, mais o trabalho foi me agradando, mais ele foi traduzindo com mais facilidade aquilo que eu queria passar.

Luciano Salles: O lance do meu traço foi bem natural, assim. Eu não forcei nada pra ser do jeito que é.

Brão em off: Luciano Salles é autor de “Limiar: Dark Matter“, “L’Amour: 12 oz“, “O Quarto Vivente” e “Luzcia, a Dona do Boteco“.

Luciano Salles: Eu não fico me questionando se o meu desenho é bonito. É aquele que eu tenho pra propor. Se eu quiser escrever com a letra igual a sua, eu vou ter que me forçar a escrever, porque cada uma letra. Alguém pode ter uma letra similar à outra pelo método de aprendizado de escrita, mas todo mundo tem um estilo de desenho. Aí cabe à pessoa aceitar aquilo e tentar não moldar, ou não emular um outro desenho que ele ache super legal, assim. Pô, eu acho vários traços legais, mas eu tenho que acreditar no meu traço, eu tenho que acreditar no que eu posso fazer, sabe? Por isso que se você não for sincero, você vai sofrer com isso, toda vez que você for desenhar vai ser um lamento. Eu acho que é muito mais fácil você trabalhar dentro da sua limitação, até onde você pode ir, do que sair desenhando sofrendo.

Lelis: No começo é óbvio que os traços são bem rudimentares porque você está descobrindo materiais, você está descobrindo até sua coordenação motora, a sua percepção sobre composição. Essas coisas todas vêm com o tempo, né?

Brão em off: Lelis é um quadrinista que mesmo com trabalhos lançados no Brasil e Europa, carrega muito forte em seu estilo, o sertão mineiro onde nasceu.

Lelis: Eu não consigo olhar pra uma coisa e fazer exatamente aquilo que está ali. Eu começo fazer uma coisa e já vêm outras coisas que misturam o desenho. Então o meu estilo é muito particular, né? Eu crio uns universos dessa forma, né? Eu sempre tenho fazer uma leitura, a minha leitura sobre as coisas. E isso é uma busca mesmo, né? É ter uma meta, um discurso sobre o seu trabalho, né? Sobre o que que você quer passar pras pessoas. Então, tudo isso abriga o estilo. Ou seja, é a composição, o tipo de desenho, o traço que eu faço, a cor que eu faço, tudo isso quer dizer que eu vim de uma região específica do Brasil, que na minha infância eu vi essas cores, eu via esse tipo de figuras e eu escutava as histórias que eu conto. Não as histórias reais, mas o jeito das pessoas falarem, conversarem. Por isso que eu tento transpor isso pro papel, porque eu acho importante tentar transcrever esse linguajar pro papel justamente pra você trazer pras pessoas, esses universos que às vezes elas não conhecem.

Eduardo Damasceno: Desenho é um negócio pessoal. Extremamente pessoal. É uma forma de se expor.

Brão em off: Eduardo Damasceno é co-autor, junto com Luís Felipe Garrocho de “Achados e Perdidos“, “Cosmonauta Cosmo“, das Graphics MSP Bidu e “Quiral“.

Eduardo Damasceno: O jeito que você desenha, o jeito que você escolhe desenhar, o jeito que você escolhe colocar aquelas ideias ali, contam muito de quem você é, e do que você faz, e do jeito que você pensa. Mas eu nunca vi necessidade de ter um estilo fechado. E as pessoas parecem que ficam esperando achar esse estilo pra começar a fazer quadrinho. Assim, você pode até querer um estilo um dia, mas ele vai existir se você fizer. Ele vai existir se você estiver desenhando. Ele vai existir se você estiver produzindo. Você vai chegar até ele se você estiver andando até ele. Se você estiver parando, esperando ele chegar, ele não vai aparecer nunca. Mas eu sempre gostei mais da ideia de pensar o visual pensado pro projeto que eu estou fazendo naquela hora. Então eu penso: “Ah, eu vou desenhar o “Quiral” de um jeito, vou desenhar o “Bidu” de outro jeito, vou desenhar um outro quadrinho de outro jeito ainda”. É claro que tem coisas que vão se repetir, talvez as pessoas olhem e falem: “Ah, é o desenho do Damasceno e tal”. Mas minha ideia é sempre meu desenho. Tanto que eu incorporo tudo, copio tudo, vejo um negócio que eu gosto e copio sem dó. “Ah, gostei do jeito que esse cara faz nariz, vou fazer uns narizes assim e ver como é que fica”. Tudo incorporado. Eu acho que o trabalho e o negócio é ir testando e ver o que é legal, mas eu não espero chegar num lugar específico nunca. Espero que eu nunca chegue. Se Deus quiser!

Raphael Salimena: Muito da narrativa é o desenho que conta.

Brão em off: Raphael Salimena publica suas tiras “Linha do Trem” e é autor de “St. Bastard” e “Vagabundos no Espaço“.

Raphael Salimena: Eu já vi desenhistas que têm um traço feio, que são excelentes narradores. O Arnaldo Branco é um gênio, cara. Ele fala: “Ah, não sei desenhar nada, meu desenho é uma bosta, e tal” cara, tem várias tiradas do Arnaldo que funcionam justamente por causa da tosqueira do traço. Eu fico olhando a cara daqueles personagens e eu fico rindo do desenho, falando: “cara, que genial isso”. Na época, o Leonardo, né? Amigo do Arnaldo, desenhou as tiras do Joe Pimp, que era um personagem dele, e o público falava: “ah, pô, está muito bonito o desenho, mas eu preferia com o Arnaldo desenhando. É que realmente, o que funcionava no roteiro dele, era o traço tosco. Se tem uma tira que vai me pedir um traço mais elaborado, eu vou fazer, porque é do jeito que vai funcionar melhor, mas muitas vezes o menos é mais. E muita gente que é muito virtuosa perde isso. Porque “ah, não, se eu não desenhar todos os cenários, vão falar que eu sou preguiçoso. Se eu não fizer essa luz e sombra complexa, vão falar que eu sou preguiçoso”. Aí acaba originando aqueles quadrinhos que você não consegue ler porque fica parando pra olhar demais a arte. Então eu acho legal a gente saber quando fazer a tosqueira e quando não, assim, que tem momento pra tudo.

Eduardo Damasceno: Pra mim, desenho, arte final e cor é tudo a mesma coisa. É muito frustrante quando você faz o esboço e aí depois você pára tudo pra finalizar e aí você se decepciona porque não está tão legal quanto estava o esboço. E o que eu tento é nunca sair dessa etapa, do esboço. É manter esse estado de espírito, da construção daquilo que eu estou fazendo até o final. É mais subjetivo do que realmente um negócio prático, mas eu tento manter na minha cabeça essa lógica. E aí nesse sentido não existe muito certo e errado. Tem dois critério pra mim na hora de fazer desenho e de fazer quadrinhos: um tem que contar história e o outro tem que ser bonito. Mas o “bonito” não é certo e errado. Bonito é quando conta a história. Às vezes você tem que esticar um braço pra ficar parecendo OK o desenho. Às vezes, tentar desenhar da forma mais realista possível, não é o que vai transmitir melhor a ideia. Então eu tento pensar o desenho muito nesse sentido. Não é um negócio que acontece na minha cabeça, passa pelo meu braço, pela minha mão e chega no papel. É um processo que ele é uma coisa só. O desenho que está acontecendo no papel e o que está acontecendo na minha cabeça é tudo o mesmo processo. Desenho é parte do processo de pensamento. Ele não é a conclusão de nada. E aí quando eu consigo transmitir essa ideia, ou fazer um desenho que pra mim faz sentido, me faz sentir bem, me faz sentir que eu estou chamando a pessoa que vai ver aquele desenho pra conversar comigo, aí eu estou feliz. Eu não quero que ela só veja e fale: “Nossa, que desenho bonito!” eu acho legal que aquilo passe a fazer parte do que aquela pessoa está pensando. E o que eu tento fazer com o desenho é isso: deixar o desenho naquela pessoa, mesmo depois dela ter visto.

Laudo Ferreira: A turma fica muito preocupada na identidade do traço. Eu acho que não está errado.

Brão em off: Laudo Ferreira escreveu e desenhou “Clube da Esquina“, “Yeshua“, “Cadernos de Viagem” e muitos, muitos outros quadrinhos.

Laudo Ferreira: Mas a pessoa fica tão preocupada com a forma, que esquece o conteúdo. Então, às vezes é muito mais interessante ela se preocupar no que que ela está contando, o que que ela vai contar, o que que são minhas histórias, qual que é minha pegada? E isso se estende não só pelo traço. “Ah, hoje tem muita gente fazendo quadrinho fofo, ah, eu também vou fazer”. Até acho que se tem que se permitir isso. Mas, de repente, a sua forma de pensar, a sua forma de ser como pessoa não é fofa. Então você está indo contra você. Logicamente se você vai contra o que você é, você vai fazer uma arte mentirosa.

Hiro Kawahara: Eu acredito muito que você pode ter mais de um estilo.

Brão em off: Hiro Kawahara é um experiente ilustrador. Depois de anos desenhando as lâminas do Mc Donald’s, começou como quadrinista lançando “Maravilhoso” e “Yowiya“.

Hiro Kawahara: Antigamente eu achava que não, estilo era uma coisa meio que sagrada, né? Só pode ter um estilo. E hoje já vejo que não, já vejo que dependendo do seu humor, dependendo da sua proposta, teu estilo pode ser bem diferente. Enquanto muita gente fica buscando como se ele fosse uma descoberta, né? Uma coisa definitiva, né? Uma coisa única. Aos poucos descobri que isso aí não é verdade, é o que você se identifica. Esse que todo mundo conhece é meu estilo mais comercial, mas quando tem que fazer uma coisa mais intimista, agora que eu estou fazendo quadrinhos, eu tenho procurado quebrar um pouco desse estilo pra separar um pouco da apresentação do “Hiro já conhecido pelas meninas fofinhas” e fazer uma coisa muito mais autoral. Buscar estilo é uma coisa muito pessoal que é identidade. É a minha identidade que fala que quero fazer uma coisa mais mutável. Então eu acredito que isso vai de pessoa pra pessoa. A melhor definição pra estilo é identidade, aquilo que você se identifica no momento. No momento que você se identifica com a ilustração, com um acabamento, aquilo já faz parte do seu estilo e isso vai podendo ser mudado ou não. Eu vejo ilustradores, né? Quando a gente fica procurando referência, cada vez que eu vejo uma arte que eu nunca experimentei, eu fico maluco falando “puta, eu quero tentar isso, eu quero ver”. O importante sempre vai ser a história, né? Um cara bom, que conta uma história boa, ele vai ajustar o estilo dele pra narrativa, não inverso, né? Quando você está bem coerente com a narrativa, seu estilo tem que combinar muito bem com esse fluxo. Se não chega uma hora que você tem um estranhamento. O contraste também ajuda muito pra contar a história. Eu gosto muito do “Beautiful Darkness“, aquele quadrinho que é uma história de personagens fofinhos, mas a história é muito pesada, muito macabra. Esse contraste é de propósito, então justamente o contraste fofinho com o background bem sangrento, bem opressivo ajuda a contar a história. A função da ilustração é contar coisas que não estão escritas no texto, né? Obviamente tem que ter uma simbiose muito grande entre roteiro e texto pra poder complementar as coisas, né?

Ricardo: Muito bem, senhoras e senhores, esse foi o primeiro podcast da série de cinco podcasts sobre o álbum “Reparos“, o terceiro, o novo álbum de Brão Barbosa, que você pode adquirir lá no braobarbosa.com/reparos. Eu sou Ricardo Alexandre e falamos aqui com Paulinho Degaspari e com o próprio autor Brão Barbosa, que não poderia faltar, né?

Paulinho: Que honra!

Brão: Olha que coincidência!

Ricardo: Exatamente. E na próxima semana a gente vai vir com o segundo episódio, no qual a gente vai falar sobre argumento, sobre personagens, e sobre roteiro. Vai ser uma maravilha, né?

Brão: Esperamos que sim, né?

Ricardo: Então tá bom! Então até semana que vem, voltaremos todos felizes aqui no podcast do álbum “Reparos“.