Making of de “Reparos” – 02 – Argumento, Personagens e Roteiro

Making of de “Reparos” – 02 – Argumento, Personagens e Roteiro

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Ricardo: Olá, senhoras e senhores. Eu sou Ricardo Alexandre e esse é o segundo episódio da nossa gloriosa série de cinco episódios sobre o álbum em quadrinhos “Reparos“. Terceiro álbum do amigo Brão Barbosa que está aqui nessa mesa, não poderia deixar de estar, né, Brão?

Brão: Sou eu.

Ricardo: É o próprio Brão Barbosa,  o autor dessa obra, e do meu lado esquerdo está Paulinho Degaspari. Tudo bem, Paulinho?

Paulinho: Olá! Estou aqui!

Ricardo: Muito bem! No primeiro episódio, a gente falou dos primeiros passos da concepção dos quadrinhos e hoje a gente vai falar sobre o desenvolvimento, como é que se transforma boa ideia num material em quadrinhos. “Reparos” já está à venda no site braobarbosa.com/reparos por R$ 35, edição independente do Brão Barbosa. Aliás a gente tem que dizer isso, né? Que esse podcast tem algumas características. A primeira é que estamos aqui conversando entre amigos, a segunda é que a gente tem depoimentos de especialistas e quadrinistas a respeito dos temas que a gente está tratando, e o terceiro é que é cheio de spoilers, né?

Brão: Exatamente.

Ricardo: Muito bem. Vamos falar do desenvolvimento então, Brão! Você contava para gente no primeiro episódio de como as suas inspirações familiares, a tua relação com o teu avô, e também as referências todas ali que você pescou ao longo da tua vida, conduziram a essa ideia, a essa fagulha inicial. Agora a grande pergunta é: como é que se transforma inspiração em argumento? Num plot? Numa coisa que tenha começo, meio e fim? Que tenha um esqueleto de história em quadrinhos?

Brão: Como eu disse lá no primeiro episódio, “Reparos” surgiu do meu relacionamento com o meu avô. A ideia inicial veio a partir da última foto, que representa para mim a vida dele. Então, nada mais natural do que fazer uma história de um avô com seu neto. Só que em retrospecto, eu vi que as minhas histórias elas tinham poucos personagens femininos relevantes, então eu quis colocar um desses personagens pelo menos fosse feminino e optei pela criança. E como desde o início eu não tinha pretensão de fazer uma biografia, então eu queria ter a liberdade de fazer o que quisesse com as personagens, para o que melhor fosse a favor da história. Então eu decidi colocar a personagem que me representa na história, como sendo uma menina. E isso, no processo, já me economizou muito esforço porque logo no momento que eu decidi que seria uma garotinha, já me veio em mente o nome, que Eunice, que é o nome da mãe do meu avô, que ele tinha muito carinho por ela, me contava várias histórias dos dois, e tal. E é um nome que me auxiliou a contar a história, porque eu gosto de quando estou criando os personagens, colocar nomes neles que me dizem algo mais do que somente uma etiqueta neles. Então, Eunice já carregava muito significado para mim. No próprio nome do personagem que representa o meu avô, além do nome dele ao contrário, né? Meu avô chama Divar, e o personagem Ravid. Mesmo assim, eu fui procurar, porque gosto que tenha essa carga. Então, eu fui procurar se existia essa palavra em algum idioma, e eu achei que “Ravid”, no idioma da Letônia, é uma palavra, que traduzida, é um tratamento de saúde. E eu achei que casou muito bem alí, porque eu acredito que se fosse algo, tipo, sei lá?! Um significado pejorativo, ou “batata”, por exemplo, eu acho que somaria pouco à história. Eu acho que, no meu papel como autor, essa carga que a palavra já trouxe, não que tenha nada de místico, ou espiritual nisso, mas eu acho que soma ali, na hora da produção, na hora da concepção do personagem.

Fábio Yabu: Eu tento sempre começar de uma sensação, ou um sentimento.

Brão em off: Fábio Yabu é autor de “Combo Rangers“, “Princesas do Mar” e muitos outros livros e quadrinhos.

Fábio Yabu: Mas não é nem a ideia ainda, sabe? Acho que é antes da ideia. A ideia seria “garoto se apaixona por garota”. A sensação é amor, descoberta, é amadurecimento. Acho que antes da ideia eu tento trabalhar essa sensação que eu quero que permeia histórias, sabe? Que muitas vezes nem é declarada e tem gente que até nem percebe. Isso que eu acho mais importante, é isso que cria histórias mais interessantes que mesmo que não verbalizem a sua ideia original, a sua sensação as pessoas acabam percebendo. E talvez, por isso, até ressoe melhor. Acho que o não dito muitas vezes é melhor do que o dito. Quando eu quero passar uma sensação mais primordial, como medo do desconhecido, medo do escuro, medo do futuro, medo de doença… Tem muitas emoções primordiais, sabe? Que a gente pode trabalhar em histórias sem falar diretamente nelas. Aí eu vou pensando, né? Qual é a ideia ideia? Se é garota se apaixona por garota, se é, sei lá, uma viagem no tempo, ou se é zumbi, aí é o segundo plano. E muitas vezes as coisas acontecem meio que em paralelo, né? Não é que é um processo linear. O McKee, que é o meu guru de roteiros ele fala: “a mente inconsciente dirige e a mente consciente é o carro”. É o que é factível, o que é possível, o que você vê. Na verdade quem está comandando o carro é a mente inconsciente ou o subconsciente.

Gustavo Borges: Quando tu lê a história, ela é toda bonita. Ela é em tons de fábula.

Brão em off: Gustavo Borges é autor de “A Entediante Vida de Morte Crens“, das tiras de “Edgar” e “Pétalas“.

Gustavo Borges: Uma coisa pequena faz você querer contar história. E do “Pétalas” se resume em generosidade. Eu queria que fosse um grande ato de desprendimento, um grande ato de generosidade. Então eu comecei a pensar que eu queria fazer uma fábula disso. Daí quando eu pensei em fábula, eu pensei que eu poderia fazer sob os olhos de uma criança, sabe? Então aí começou a surgir a ideia de que eu queria colocar as coisas dessa forma, e imaginei que um dos maiores atos de generosidade seria no meio de uma guerra, numa área afastada, que tivesse acontecido uma nevasca, ou assim, por circunstâncias do meio, dois exércitos opostos deixassem de ser soldados e passassem a ser pessoas. E eles tivessem que andar juntos. Eu não queria entrar nessa coisa de falar sobre isso. Eu queria ficar num ato de generosidade. Então isso me veio em colocar o ato de generosidade teria que ser passado por um animal que seria a presa na vida real, para o predador. Na HQ, quem chega, aparece do nada, e faz um ato generoso é o pássaro para uma raposa. Mas esse background todo que eu criei, tu vê isso entre linhas.

Ricardo: Foi exatamente o teu caso, né, Brão? De você conseguir construir uma história a partir de um sentimento.

Brão: É. Foi um sentimento que estava procurando até à concretização dele. O processo todo da história foi até uma tradução para mim do que eu realmente estava sentindo. Esse meu luto pelo meu avô, e tal.

Paulinho: Você falou que escolheu uma menina como protagonista e isso te deu a liberdade de criar em cima dela, e modificar a história. Mas assim, como leitor, e como curiosidade, eu queria saber quanto da história é verídica, o quanto você viveu daquele relacionamento, e você colocou na história, na personagem ao invés de ser você lá participando

Brão: Na prática tem mais lampejos de realidade. Por exemplo, a oficina dele era muito próxima do que é retratado na história. Aquele caos organizado na cabeça dele. Inclusive coloquei vários equipamentos que ele realmente tinha ali. E esse deslumbramento que a Eunice tinha ao entrar na oficina, era o mesmo sentimento que eu tinha. Eu achava que eu estava entrando numa grande caixa de brinquedos e um portal ali para várias possibilidades. Porque eu passava ali algumas tardes com ele. Então eu o ajudava. Pouco, mas ajudava, enquanto ele consertava um equipamento ou outro. De vez em quando eu trazia um projeto pra ele, e a gente construía juntos. Esse tipo de coisa. Tem uma sequência muda do quadrinho, em que eles passam por diversas fases, consertando vários equipamentos. Eu vivi muito daquilo ali.

Paulinho: Foi meio que é um resumo do que você viveu com ele.

Brão: Isso. Algumas pessoas podem achar exagerado até o lance do avião ali, por exemplo, dos dois consertando avião, mas aquilo é referência…

Ricardo: Eu achei, eu achei! (risos)

Paulinho: Aquilo é referência a quê?

Brão: Ao aeromodelismo que ele praticava, e à coleção de aeromodelos que ele tinha, e que ele consertava e tal. E eu e minhas primas, por exemplo, a gente ia lá e ficava brincando: “Aquele avião é meu, aquele é seu”, sabe?

Paulinho: Que legal!

Brão: E até nesse processo, eu tenho duas primas muito próximas a mim que têm idades parecidas e no momento em que eu decidi fazer uma personagem feminina, eu entrei em contato tanto com elas como a minha irmã, que é um pouco mais nova, para saber qual foi a relação que elas tinham, a visão que elas tinham, para com essa figura do meu avô também, para não traduzir só o meu sentimento, mas fazer jus ali à personagem, à visão dela.

Ricardo: Pô, que coisa bacana. Então a própria produção continua sendo um gesto de afetividade, emotividade em relação aos teus parentes diretos ali, né?

Brão: Ah, sim! Até visões diferentes delas me ajudaram a construir melhor o personagem.

Ricardo: Que me parece um bom link para o nosso próximo assunto desse episódio, que é a construção dos personagens, dos outros personagens. O quanto tem de personagens reais, de experiências verdadeiras nas outras crianças ali do grupo? Obviamente, em uma leitura mais superficial, eles ajudam a explicar as características da Eunice e as características da relação dela com o Ravid, né? Isso aí é a coisa mais evidente. Como é que eles surgiram?

Brão: Os personagens coadjuvantes cumprem funções para direcionar a história e para fortalecer os personagens principais que são, obviamente, a Eunice e o sr. Ravid. Então eu utilizei bastante de referências pessoais e filmes da minha infância, que eu assistia, para fazer a construção desses personagens. Por exemplo, a relação que ela tem com o Júnior é uma relação baseada num dos meus filmes favoritos da infância, que é “O Pequeno Grande Time“, o nome original é “Little Giants“. Então tem a personagem que é a Icebox, que é uma personagem que eu me baseei bastante para fazer Eunice, que é uma personagem bem moleque, uma garotinha bem moleque, que no caso do filme, ela era a melhor jogadora do time de futebol americano e ela era sempre bem truncada no sentido afetivo, até que ela encontra o Júnior, que é um garoto novo na cidade que entra para o time, e ela se vê ali gostando do garoto e tal. Então o nome vem do próprio filme, a jaquetinha dele, do personagem, tem o número onze, que é o número do Júnior no filme.

Paulinho: Olha só!

Ricardo: (risos)

Brão: Por exemplo, o sr. Ravid. No momento em que eu estava construindo a história, que eu decidi que eles não teriam relacionamento familiar. Eu decidi isso porque eu precisava construir a ideia de um monstro na Eunice, para depois desconstruir isso. Então, logo que eu tive essa saída, que eu achei essa ferramenta, me veio à mente o “Esqueceram de Mim“. Em que o Kevin tem aquele primeiro embate com aquele vizinho da pá, né? A construção é bem parecida com o que eu queria. Então me baseei nele. E a Lara e o Igor são personagens que servem de um alívio cômico, e de um direcionamento, que eu utilizei algumas características de amigos próximos a mim, que me ajudaram no processo de construção. A Lara é uma referência ao meu amigo Lassmar, que é um ilustrador também, e o Igor é uma referência a um quadrinista amigo meu, que é o Vencys Lao. Que pouca gente sabe que é o nome dele real. É o João Igor. Desculpa aí, Vencys, por estar revelando o teu segredo, (risos) mas foram duas figuras que me ajudaram na construção da história, em momentos que eu tinha dúvida de como seguir no roteiro, que me ajudaram e aí coloquei algumas características dos dois personagens para auxiliar. E aí nada mais justo que batizá-los assim.

Ricardo: Muito bom! Isso aqui é uma verdadeira matéria-prima para um jogo de Trivia sobre…

Paulinho: Não, e tem muito mais, cara! O que ele espalha, o que o Brão espalha de easter eggs nesses quadrinhos… Assim, a primeira coisa que eu faço quando vejo quadrinhos do Brão, eu vou procurar placa de carro. Porque placa de carro é sempre easter eggs, é sempre referência… (risos)

Brão: Isso na verdade, não é porque “ah, eu vou colocar porque sou legalzão”, não. Mas é porque é a forma que eu acho mais fácil, e mais rápida de poder preencher lacunas do que para mim fazem falta. Então, eu vou naquilo que me cativa, naquilo que eu gosto, e vou colocando ali para poder encorpar a história.

Paulinho: Então assim, tem que deixar para as pessoas descobrirem os easter eggs.

Brão: Ah, claro!

Paulinho: Num pode ficar contando aqui, né?

Ricardo: Não, não pode.

Paulinho: Mas tem alguns bem legais.

Vitor Cafaggi: Eu nunca parei para pensar muito no meu processo de criação de personagens. Todas as vezes aconteceu de forma instintiva.

Brão em off: Vitor Cafaggi é autor de “Valente“, “Punny Parker“, “Duo.tone“, e escreveu ao lado da sua irmã Lu, “Laços“, “Lições” e “Lembranças”, as graphics MSP da turma da Mônica.

Vitor Cafaggi: Teve um quadrinho que eu fiz independente chamado”Duo.tone“, que o personagem principal é um menino chamado “Tim” e tem várias características minhas de quando eu era criança. E até a situação que ele está vivendo é parecida com algumas coisas que eu vivi. Então, desse jeito, até os nomes dos personagens surgem com naturalidade. “Tim” um apelido que eu tenho em casa. “Valente” mesmo, que é outro personagem, o nome do Valente veio de um cachorro que tive chamado “Valente”. O nome de todos os personagens coadjuvantes do “Valente” são nomes de animais que os amigos tiveram. Meu amigo que me inspirou o Esopo, teve um cachorro chamado “Esopo”. Meu amigo que me inspirou o Cacique, teve um cachorro chamado “Cacique”. Meu amigo que inspirou o Percival, teve um gato chamado “Percival”. É bem natural pensar assim, porque pra começar eu acho que eu enxergo o personagem não como personagem mesmo, alguém que tem só uma característica principal e pronto. Eu tento enxergar como pessoas, mesmo, com uma história de vida por trás, com objetivo de onde eles querem chegar e tudo o mais. No “Valente” isso é muito vivo e é muito fácil fazer isso no “Valente” já que é praticamente uma autobiografia. Teve que vir a partir de experiências que eu já tinha e com personagens totalmente inspirados em pessoas que eu já conhecia. No “Valente“, eu sei como é que cada personagem age, em qualquer tipo de situação que eu colocar eles exatamente por eles serem baseados em pessoas muito próximas de mim. E até trabalhando com personagens que não são meus, como a Turma da Mônica, eu tento colocar minha visão desses personagens.
Quando a gente teve a chance de trabalhar com a turma, uma das coisas que eu e minha irmã queríamos fazer era mostrar o que que eles eram além do que todo mundo enxergava neles. O que que o Cebolinha era além de ser um menino que troca o “r” pelo “l”? O que que o Cascão é além de um menino que não toma banho? Quais as relações entre eles? Qual a importância de um para o outro? Qual o apelido que um chama o outro? Humanizar eles mesmos e trazerem eles mais para perto da gente. Eu acho que os bons personagens, quanto mais humanos eles forem, melhor. Mais fácil da gente se identificar.

Gustavo Borges: Ao primeiro de tudo, quando eu me familiarizo com um personagem, pra eu ficar tranquilo com ele, eu tento entender como ele pensa.

Brão em off: Gustavo Borges novamente.

Gustavo Borges: Porque daí eu vou conseguir me colocar de uma forma mais confortável, fazendo aquilo, do que só mexer o personagem como se fosse uma peça para o roteiro acontecer. Tentar colocar um personagem mais como “não, eu acho que ele pensa assim, vai agir dessa forma e vai responder assim” porque eu já fui estruturando minha cabeça ao ponto que eu consigo entender quais são os vínculos, e para onde ele pensa e como ele reage a situações assim. É entender um pouco como é a dinâmica interior do personagem. Para que eu possa meio que simular ele. Como se eu fizesse um demo dele em mim e eu atuo na minha cabeça essas funções que ele vai ter que fazer. Se ele vai ter que tomar decisões, ou se ele é um personagem que tem muita responsabilidade, um personagem que quer atenção.
Vou tentar usar um exemplo do Edgard, que é meu personagem. Várias coisas que eu fui criando sobre ele, sobre o passado dele, sobre o avô dele, isso foram coisas que foram resultando de eu imaginar assim: “bom, então esse personagem, se ele teve um passado assim, ele não vai, necessariamente, se relacionar bem com pessoas mais jovens. Porque nessa convivência que ele teve com a avó dele, ele passou a ter a visão do avô dele e das coisas, e o avô dele não concordava com outras. Então ele meio que absorveu isso e cresceu com isso, ele também teve bullying na vida dele, com alguma coisa, e isso foi o resultando que ele ficou meio fechado. E tem o amor dele pela ciência…”
Então eu vou meio que fechando algumas chaves, moldando a história, com um pouco do que eu quero com o personagem. E tentando entender assim, como é que eu viro a chave do personagem para eu fazer ele funcionar sozinho. No quadrinho do Edgard não tem nada sobre o avô dele. Mas o avô dele foi uma coisa que eu sempre penso. Eu preciso do inicial dele. Entender onde ele se difere de mim, pra eu conseguir pensar “por que é que ele iria pro outro lado?” O porquê que ele agiria de forma egoísta. Coisas do tipo. E eu começo a entender como ele vai funcionar em outras situações. Bom, se ele funcionasse assim nessa, na outra situação mais na frente que talvez eu tenha que pensar, não na construção do personagem, mas quando eu estiver na história mesmo, eu não vou me embaralhar. Porque eu já entendi como a personagem funciona. Estou mais familiarizado jogar com eles, como se fosse um vídeo-game mesmo.
E outra coisa, eu começo o personagem com uma simbologia. No “Pétalas“, os personagens, eles têm uma simbologia, por serem os animais que eles são, e não necessariamente são animais. No “Edgar“, eles são os animais. Ele realmente é o castor, que seria o bicho castor, do nosso mundo real. E eu uso assim, no Edgard, o castor, o animal mais racional, que ele tem um instinto matemático quase. Ele consegue fazer coisas incríveis na natureza. Daí eu pego essa simbologia dele, e essa figura que o castor já tem. Esse intelecto cravado no instinto dele. E no “Pétalas” são os animais que eu desenho ali, mas a ideologia daquele animal, a fisionomia a dinâmica entre um animal ser predador e outro animal ser presa, isso é a simbologia que eu queria colocar para aqueles dois seres. Porque não gostaria de representar humanos naquela história. Então eu criei uma simbologia para colocar em cima deles. Isso também já causa quase como uma vestimenta pra também guiar as personagens.

Lu Cafaggi: Pegando coisas que já existem e me colocando nelas também.

Brão em off: Lu Cafaggi fala sobre a criação dos personagens de “Mix Tape” e da biografia de Bruna Vieira.

Lu Cafaggi: Mesmo em “Mix Tape” sendo personagens completamente fictícios, tudo é com referência em pessoas que eu conheço. Mesmo que uma personagem de “Mix Tape” não seja uma pessoa real, todas essas pessoas que a gente coloca num quadrinho vêm das pessoas que existem. Vêm de experiências convivendo com estas pessoas, vem de observar o jeito delas de ver a vida mesmo, de reagir às coisas.
No caso da Bruna, por exemplo, a personagem principal é ela. Os outros personagens são fictícios completamente. Mas todos eles, incluindo a Bruna, são baseados em pessoas da minha adolescência mesmo. A Bruna passa por coisas que eu passei. É tudo uma mistura de observação de que as pessoas são, e de quem eu sou. Mas não de um jeito “ah, vou me colocar aqui como um indivíduo que é muito importante, meus gostos são importantes, meus sonhos são importantes”. Não assim. É mais em relação a trabalhar os sentimentos e a trabalhar a aceitação que a gente tem com os nossos erros, nossos defeitos…

Ricardo: Agora, tem uma coisa que não é um easter egg, mas é uma coisa grande, uma coisa evidente, que assim… Eu sou testemunha de que quando o Brão começou a preparar “Reparos“, ainda não havia “Stranger Things“, não havia “It: A Coisa“, essa onda incrível de crianças andando de bicicleta…

Paulinho: Atrás de coisas estranhas.

Ricardo: Atrás de coisas estranhas… (risos)
Quanto dessa, você já falou um pouquinho disso, queria que você aprofundasse até na construção do roteiro. Se você conseguir ver se esse parentesco com o cinema te inspira para além dos easter eggs, pra além das referências.

Brão: Sobre esse aspecto de referências, “ah, o filme ‘tal’ utilizou essa ideia primeiro, e tal”. Por exemplo, nesse caso o mesmo. “Stranger Things” foi lançado dia 15 de julho de 2016 e eu comecei a escrita de “Reparos” no dia 15 de agosto do ano anterior. Então por mais que… Bom, só estou lançando o livro agora. Quem vê logicamente vai fazer a assimilação e tal. Mas assim, o próprio João Marcos, que é um autor bem próximo a mim, foi meu professor de quadrinhos na faculdade, ele fala algo bem similar a isso.

João Marcos: Eu acredito que quem trabalha com criação ficar atento aos sinais que estão em torno da gente.

Brão em off: João Marcos é professor e quadrinista. Seus personagens mais conhecidos são Mendelévio e Telúria. E é roteirista da Mauricio de Sousa Produções.

João Marcos: No caso, o que eu chamo de sinais são as ideias. Às vezes esses sinais aparecem de surpresa, de um tema que eu não estava pensando inicialmente, vem de uma leitura, vem de uma experiência do dia a dia. Às vezes eu vejo uma imagem e fico imaginando desdobramentos que podem surgir dela, que vão me contar uma história. Como o meu público é o infantil, eu fico muito atento às crianças que estão à minha volta. Os meus filhos. E por causa do trabalho com os livros, eu costumo visitar muitas escolas. Então eu fico muito atento, procurando essas ideias. Às vezes essa história vem completa, às vezes ela vem de surpresa e às vezes ela vai sendo construída aos poucos. E quando eu estou trabalhando num livro e eu tenho outras ideias, eu vou guardando todas elas. Por exemplo, eu comecei a trabalhar no livro novo com os meus personagens, o Mendelévio e a Telúria, o que será o terceiro livro. Então eu peguei a minha pasta e estava cheia de papéis. E é impressionante quando eu falo a questão da história vir pronta, ela acha lugar na cabeça da gente porque tem um espaço ali pra ela habitar. E eu acho que o espaço vem por esse esforço, por esse conhecimento, por essa busca de entender como é que se conta uma história. Você pode ter uma ideia fantástica, mas se não tiver os meios pra executar, você fica perdido.

Brão em off: Samanta Flôor, autora de “A Canção de Ada“, “O Astronauta de Pijamas“, “Chance” e outros, é bem prática ao ser questionada sobre seus insights.

Samanta Flôor: Eu não tenho insights, na verdade. Eu tenho uns caderninhos e qualquer ideia, qualquer bobagem que me surge, eu vou anotando ali.

Brão em off: Cris Eiko, sobre as ideias para os “Quadrinhos A2“.

Cris Eiko: Às vezes acontece umas coisas inusitadas e ele só vai anotando. E às vezes é algo muito engraçado, ou é uma ideia que ele teve que não aconteceu, mas que por causa de algo que aconteceu com a gente ele teve essa ideia. Por exemplo, no A2 #4 tem a história que o Pino se transforma em outros animais. Isso acontece porque toda vez que a gente vai sair o Pino, o Pino se transforma. Ele normalmente aqui em casa é essa coisinha meiga assim, que passa o dia dormindo. Aí quando ele sai na rua vira uma fera. A gente fica apelidando ele de “tubarão”… As quase vítimas dele já chamaram ele de filho do capeta.

Laudo Ferreira: Eu sou totalmente contra essa coisa de falar “ah, eu tenho inspiração…” Não!

Brão em off: Laudo Ferreira.

Laudo Ferreira: Até a minha inspiração, vamos dizer assim, ela é uma coisa matemática. Se for para levar uma coisa assim, “inspiração”, eu tenho que estar inspirado o tempo todo.

Zé Wellington: Na maioria das vezes, quando eu tenho um insight é quando estou vendo outra coisa. Estou assistir em determinada obra, lendo determinado livro.

Brão em off: Zé Wellington é roteirista de “Quem Matou João Ninguém?“, “Steampunk Ladies” e “Cangaço Overdrive”.

Zé Wellington: Acontece muito de eu estava vendo uma coisa, e eu começo querer adivinhar o que vai acontecer. Mas às vezes, a gente está assistindo aquele filme, eu imagino como acho que seria legal o final do filme, e para minha sorte a história toma um caminho completamente diferente. Por que que eu digo “pra minha sorte”? Porque normalmente quando isso acontece, imediatamente eu pego um papel e anoto aquela ideia, e provavelmente vai sair uma história daquilo. “Cangaço Overdrive”, que vai sair no início de 2018, ela vem de uma paixão que tenho por “Samurai Jack“. E “Samurai Jack” tem muito daquela história de deslocamento do samurai para futuro. E eu pensei “pô cara, seria tão legal se fosse com um cangaceiro”. E criei uma forma diferente. A história não tem magia como tem no “Samurai Jack“, mas partindo dessa premissa, acabou vindo esse meu insight inicial e vem de lugares mais caóticos e absurdos possíveis.

Brão em off: Eduardo Damasceno também é bem cético quanto ao conceito de “dom”.

Eduardo Damasceno: Não existe isso, né? Inspiração, essas coisas… Eu acredito muito que são coisas que não são necessariamente nossas. Elas passam pela gente. Então, o que tem que acontecer é a gente está afiado pra tocar essa música quando ela passar. Meu trabalho é treinar desenho, treinar fazer quadrinho, é estar sempre caminhando para que quando as coisas chegarem até mim, eu consiga deixá-las passar por mim.
Eu acho muito danoso esse papo de “dom”. Não é assim que funciona a vida cara, cara! (risos) As coisas não são mágicas! O que você quer dá trabalho. Dá muito trabalho. Não é só querer, e não é nascer com isso. É um meio termo aí que você tem que entender que se você quer fazer isso você tem que se dedicar a isso. E aí tem todo aquele problema: tem pessoas que podem se dedicar a isso, tem pessoas que não podem se dedicar a isso, por questões sociais, por questões diversas. E acho que é parte do meu trabalho tentar criar oportunidades para quem não tem elas ainda. Porque eu realmente acredito que todo mundo consegue.

Lillo Parra: Eu acho muito engraçado o pessoal falar assim: “pô, da onde você tira tanta ideia? Eu queria ter uma ideia assim!” Cara, ideias assim, qualquer pessoa tem em qualquer hora do dia.

Brão em off: Lillo Parra mostra como qualquer um pode ter ideias para uma história.

Lillo Parra: As pessoas acham que “ah, eu tive essa ideia. Veio pronta. Pum! Saiu o gibi.” Não, não. Você tem uma ideia de nada. Uma bostinha de uma ideia. E é em cima disso que você trabalha. Em cima disso que você estrutura. Você tem um insight, eu tive a ideia, “pum!” Meu, preciso escrever sobre isso. Cara, vai pesquisa, vai assistir filme, vai ler livro e vai trabalhar aquilo e vai trabalhar, vai trabalhar, não existe ideia mirabolante. Você precisa ler de tudo, você precisa ler livro técnico, você precisa ler coisas que não tem nada a ver com aquilo, você assistir filmes, você precisa na verdade, adquirir muita cultura. E muita cultura, num estou dizendo que você tem que ir em teatros, em cinemas, nisso e naquilo. Não só isso. Você tem que parar na rua, entendeu? E ficar vendo o pessoal jogando truco na Praça da Sé. Comer pastel na feira da Liberdade, pegando ônibus pra diabo, e na verdade, o artista tem a capacidade de sintetizar esse monte de experiências em um objeto artístico, em um produto cultural.

Larissa Palmeri: O processo todo de desenvolvimento de uma história, antes de qualquer coisa, requer muita bagagem, tanto cultural, quanto de vida.

Brão em off: Larissa Palmeri, é co-autora de “Periferia Cyberpunk” e “Space Opera“.

Larissa Palmeri: Todo mundo tem uma bagagem de vida, mas eu acho que as pessoas têm que aprender a identificar as próprias experiências que podem ir pro papel. Como identificar no nosso cotidiano, e as referências que eu poderia trazer para as histórias que eu escrevo. Eu nunca tinha parado para contar história. E eu percebi que na hora de desenvolver, vai muito de você, né? Muito da sua percepção de mundo, das coisas que você já viveu.

André Diniz: Um monte de história maravilhosa aí que você vai ver, que se você for lá na gênesis, o argumento não tem nada!

Brão em off: André Diniz tem diversas publicações, sendo “Morro da Favela” a de maior projeção.

André Diniz: Às vezes é o quê? “Ah, um rapaz conhece uma garota, fica apaixonado, tenta ali… e pronto! E aí ela não quer… até que os dois passam a namorar” Em muitos casos não é tão óbvio assim, mas se você for ver, a ideia central ali é uma ideia simples. E se essa ideia simples está sendo narrada de uma forma diferente, está sendo usado um outro cenário, os personagens são extremamente carismáticos e apesar da ideia inicial ser pobre, mas os personagens não são previsíveis… A questão da soma de ideias.
Às vezes a ideia inicial em si não tem nada de mais. Mas aí você vai acrescentando isso aqui, isso ali… O Marcatti tem uma analogia ótima. Da sopa de pedra. Que você esquenta a água, põe uma pedra, aí você coloca uma cebola, coloca isso, coloca assim, dá um toque disso, dá um tempero e tal. Depois tira a pedra, o que fica ali dá uma sopa maravilhosa. Às vezes o argumento ruim, o argumento fraco é a pedra da sopa. Às vezes tem o seguinte também, às vezes tem um argumento fraco inicial, que ele te impulsiona a vir e tal, você cria um personagem interessante, põe um cenário assim, no final a história está pronta e aquele argumento inicial nem é mais a história que você fez.

Raphael Fernandes: Eu acredito que boa parte das obras que são tidas como originais, e tudo mais, nasceram de ideias não originais.

Brão em off: Raphael Fernandes é roteirista e editor da Editora Draco. Autor de “Ditadura no Ar” e “Apagão“, conta um pouco sobre seu processo.

Raphael Fernandes: Todo mundo gosta de perguntar para quem cria: “Da onde vêm as ideias?” É uma mistificação da criatividade. Porque a maior parte das pessoas não prestam atenção nas coisas que estão acontecendo em volta delas. E escrever e criar, basicamente é estar atento a tudo isso, e se incomodar com as coisas. As aspirações para as histórias estão em toda parte, o tempo todo. Todo mundo produz arte e cultura, tem que consumir todos os tipos de cultura. Você tem que ir ao teatro, você tem que ir ao cinema, não só ver os filmes que tem a ver com as coisas que você gosta. Ler livros diferentes, ter experiências de vida diferentes. Eu acho que experiência de vida é o grande lance para quem conta histórias. Você tem que ser o tipo de pessoa que se coloca em situações até um pouco constrangedoras para ver até onde elas vão. Por exemplo, se você está na fila de um banco e aí uma senhora que vai reclamar muito do que está acontecendo. Você presta atenção nela, conversa com ela, pergunta por que ela está nervosa, eu faz essas coisas. (risos)
Tem um escritor, chama Diego Morais. Ele fala um negócio muito importante: “um escritor que nunca dormiu na sarjeta, não serve para nada”. Tem que estar convivendo com as pessoas. Você tem que estar inserido na sociedade. Vai arrumar uma briga na rua, vai pra praia sem levar protetor solar, faça coisas que tragam experiência de vida para você. Se não, sua história vai ser um saco! Você não vai ter nada a contar.

Brão em off: Raphael continua falando sobre suas técnicas, em especial, de Ray Bradbury, escritor de ficção-científica e fantasia.

Raphael Fernandes: Eu sou um adepto do Ray Bradbury e o método dele era o seguinte: consistia em cadernos em que ele anotava palavras essenciais para ele. Então, por exemplo, ele trabalhava muito com histórias de terror e fantásticas. Então ele pensava: “quando era que eu tinha medo de circo. Por que eu tinha medo do circo?” Aí ele fica tentando lembrar daqueles sentimentos originais que ele tinha quando era criança, e buscar uma palavra chave com relação a isso. Por exemplo, ele pensava: “caramba, eu tinha medo do circo por causa do tigre”. Aí ele anota “tigre”. “Porque dava uma sensação de que estava num sonho”, aí ele anota “sonho”. “Era tudo meio artificial”. Anota “artificial”. Ele juntava esse monte de palavras elementares e no fim, ele tinha esses cadernos com essas palavras e quando ele estava precisando escrever uma história, ele revisitava, ou ele fazia uma lista dessas, e ficava olhando para essas palavras e amarrando elas tentando dar uma lógica para elas, e criar uma história nova a partir disso. E essa busca por sentimentos elementares, de coisas que você sentiu na essência, quando você era criança, coisas que você tinha muita saudade, ou medos muitos simples, que tornavam a obra dele tão poderosa. Como editor eu vejo muito isso. O cara tem um personagem que claramente não é o herói, não tem apelo pra isso. E aí ele não tenta mudar o ponto de vista. Talvez o amigo dele seja o cara legal pra contar a história. Até me arrisco quando eu faço isso. Acho que as pessoas esperam muito o óbvio. E quando você tenta buscar um ponto de vista diferente, isso até incomoda.
Por exemplo, no “Apagão“, eu tentei colocar no primeiro volume a narração sendo contada por alguém totalmente insuportável. Que eu mesmo odeio. E alguns leitores acharam: “pô, o cara vacilou. O cara tinha um personagem mó forte lá, o Mandril, e colocou um cara mó chato contando a história”. Por outro lado, vi outras pessoas falando “eu tenho a sensação de que ele escreveu esse cara pra gente odiar ele. E deu muito certo”. (risos) E é. Foi isso que eu fiz. A questão de ser o herói não torna ele heróico. Ele na verdade é o cara que é transformado durante a história.

André Diniz: Quando está naquela fase das ideias, de ver exatamente qual que é a história, o tema é esse, não é, e abordagem, qual é, mas isso aqui tal, não está bom, qual o rumo que eu vou tomar? Essa parte é um pesadelo.

Brão em off: André Diniz continua.

André Diniz: O desesperador é justamente isso. Esse pré momento ali de sentar e escrever, isso não tem técnica. Isso cada vez sai de uma forma diferente. Ajuda muito nessa hora é saber fazer as perguntas certas. Às vezes você está com uma ideia, a coisa está tomando forma, mas aí, mas aí, mas por que que não está ainda… Por que que eu ainda não estou acreditando nessa história? De repente a história vai ser aquela mesma ali, mas eu estou focando em um personagem, quando o protagonista na verdade é outro. Eu estou justamente nesse processo agora, com uma história que eu estou fazendo, e cheguei até a começar a desenhar umas páginas, está tudo OK, mas não está. E aí fica ali alguma coisa que te impede. “Por que que eu não estou muito a fim de sentar e desenhar essas páginas?” e começa a ficar claro que está faltando alguma coisa, que há alguma coisa ali de errado nisso tudo. No caso dessa, por exemplo, eu fui me dar conta depois. O protagonista, ele está muito passivo. Está vindo as coisas a ele e ele reage. Isso é uma premissa fraca pra uma história, né? Mas até me vir isso, até ficar claro no meio de um monte de fatores, é um tormento isso. (risos) O que pode chegar mais perto de técnica nessa primeira etapa é escrever. Sentar e escrever. Vem vindo as ideias soltas e eu vou anotando todas. Por exemplo, eu anotei umas ideias partindo do princípio que o protagonista é homem, ou que morre no meio da história. E aí depois eu começo a colocar outras ideias partindo do princípio que o protagonista é mulher, que vive até o fim. As ideias vêm e eu vou jogando. Depois, quando parece que vai sair uma história dali, aí eu começo a peneirar, começo a ponderar. Começo a decidir pra que lado que eu vou. (risos) Esse é o momento do caos. (risos) Acho que dificilmente de uma ideia sai uma história. Pode vir uma ideia ali do ponto de partida, mas ela vai precisar de várias outras ideias juntas pra ganhar um corpo de história. “Ah, a minha história é sobre isso” às vezes vem uma ideia interessante, de um tema interessante, mas que já foi abordado várias vezes, e de repente a ideia vem quando eu sento, quando eu tenho uma história, vem a ideia desse tema, casado a uma outra forma de contar. Antes de eu fazer o “Morro da Favela“, a biografia sobre o fotógrafo Maurício Hora, lá do Morro da Providência, eu fiz esse roteiro em 2009, por aí. Minha metodologia depois de soltar as ideias era sentar no Word e sair escrevendo. Quer dizer, a partir dali eu comecei a ver que eu precisava de mais. Tinha uma série de depoimentos do Maurício que eu podia dar qualquer abordagem pra aquilo. Foi nesse momento que eu passei a usar, a estruturar em roteiro de cinema. Na época eu usava o CELTx. O roteiro pra cinema tem uma formatação toda específica, né? Que você tem que seguir. Roteiro pra quadrinho não. Principalmente que eu estava fazendo pra mim mesmo. Mas ali, o que me ajuda muito é a forma de organizar as ideias. Você separa os trechos por cena, você reorganiza essas cenas, você acrescenta ações ali que não vão entrar no texto final, marca com uma cor cada cena dependendo do critério, então isso me ajudou muito. E a partir daí eu passei sempre a usar um software pra organizar as ideias. Hoje eu uso no iPad Pro o OneNote, eu uso também tanto texto, como pra fazer anotações à mão como se fosse escrevendo no caderno, e aí digito, puxo seta, risco ali. E também uso em paralelo um aplicativo de como se fosse aquelas fichas que você escreve e organiza. Então isso me ajuda muito também. Às vezes o roteiro está confuso demais aí eu passo pra um outro. (risos) Me ajuda muito isso. Mudar de processo, a ferramenta de pensar, o roteiro, de pensar, às vezes me ajuda também. “Tá complicado desse jeito? Então vamos tentar aqui, por esse outro caminho”. (risos)

Ricardo: Você falou um pouco da construção do roteiro, de como é que você encadeou a sua história. Agora como curiosidade, você teve que cortar muito? Porque uma coisa que é clássica, por exemplo para um jornalista como eu, é que o jornalista gosta de escrever e o editor gosta de cortar, né. (risos) O prazer do editor é cortar. Como é que é ser o seu próprio editor? Como é que foi esse processo de você se debruçar sobre o roteiro e falar “não tem uma ‘barriga’ aqui, tem que cortar, tem que aprofundar” ou quão aflitivo isso é?

Brão: No meu processo, pelo menos, ele se inicia de sinopses pequenas e aí o roteiro vai tomando corpo, e aí depois ele tem que ser “enxugado”. A maior parte do processo eu fiz de forma totalmente independente, então eu fui ali crescendo o roteiro, crescendo a história cada vez mais, eu por iniciativa própria, fui cortando ali o que eu achava que estava de “gordura”, de excesso ali na história, para que ela funcionasse melhor. Mas nos “finalmentes” ali, eu ainda não estava satisfeito totalmente e eu convidei o Eduardo Damasceno pra poder me auxiliar ali e ele me editou no processo e cortou muito mais coisas. Teve balões que foram completamente retirados, e isso fez uma diferença incrível na história.

Paulinho: Uma fluidez, né?

Brão: Caramba! Tem que agradecer muito o Damasceno pro causa disso.

Rircardo: É, o olhar externo é sempre útil, né? Porque a gente acaba ficando com o olhar viciado, ali na história

Brão: É aquele processo de criação. Primeiro você acha que tem uma ideia incrível, no meio do processo você está odiando, mas você caminhou demais para desistir e aí no final você começa a se apaixonar pela história novamente.

Paulinho: Que legal.

Lillo Parra: Descatar, isso eu aprendi com o André Diniz. Ele falou assim: “Escreva tudo o que tem na sua cabeça, mas tenha ciência absoluta que você vai precisar cortar”.

Brão em off: Lillo Parra de volta.

Lillo Parra: E sai cortando sem dó nem piedade. Se não é necessário, corta! Corta cena, corta diálogos. O “La Dansarina” depois que o Jeff desenhou, antes de ele colocar os balões de texto, eu falei: “manda pra cá que eu vou mexer no texto inteiro”. Eu fui retrabalhando cada um. Eu falei assim: “esse balão entra, esse balão não vai, esse balão é modificado, esse que estava no quadro 2, vai para o quadro 4”. Não foi mudada a história, mas teve sequências inteiras que falava na página inteira que viraram sequências mudas, porque não precisava da palavra. Então escrever é saber cortar.

Ricardo: Você tinha falado que a fagulha inicial partiu justamente da cena final do livro, mas você sabia desde o início como a tua história iria acabar, como o álbum ia acabar.

Brão: Eu queria que o final fosse a foto, que é. Mas eu não sabia necessariamente como chegar lá. Eu sabia onde queria chegar, mas até chegar nesse destino, muita coisa vai mudando.

Cris Eiko: Às vezes você tem uma ideia e ela vai se transformando em algo melhor ou pior e você tem que descartar, começar de novo.

Brão em off: Cris Eiko sobre sua publicação “Culpa“.

Cris Eiko: Foi a minha primeira experiência escrevendo um roteiro. Eu tinha mais ou menos uma ideia que basicamente está lá no “Culpa“. Tá a criança desenhando e acontece da outra ficar com raiva e enfim, destruir o desenho. Isso é baseado em algo que aconteceu mesmo comigo. No caso eu sou o irmão mais velho. Ele ia lá, mexia no passado dele e o negócio só piorava. Aí eu pensei: “mas pô, porque eu preciso desse cara? Porque eu não conto só o que aconteceu lá realmente, né?” Aí eu fui mudando, na verdade eu descartei essa história pra tentar fazer algo novo uma três vezes, mas isso aí ajudou a condensar a história e a focar só nas crianças mesmo e não colocar um adulto que volta no tempo arrependido, nem nada. E ficou bom.

Brão em off: Laudo mostra como uma obra pode sofrer mudanças até por limitações editoriais e de veiculação.

Laudo: No caso do “Cadernos de Viagem“, ele foi uma ideia que me foi proposta. Inicialmente era para ele ser uma web comics semanal, uma página. Num segundo momento, veio uma proposta de participar de uma revista eletrônica. Aí o começo desse livro, era uma primeira história dessa revista, depois eu acabei fazendo dela uma tira que eu publiquei na Folha de São Paulo, naquele quadrão. E aí que eu resolvi pôr no Proac e quando passou, eu redesenhei tudo. Mudei o concept do personagem. Pra você ver que tudo isso que eu estou te falando, é técnico, maturação da história. Porque se a revista eletrônica fosse ter uma vida, a história, o jeito que ela começa é mais ou menos semelhante ao jeito que começa no álbum, mas elas tomavam rumos completamente diferentes porque ela foi pensada naquele momento como uma série, no caso eu precisei condensar. Ah vou fazer um livro com duzentas páginas, sendo que eu tinha dez meses para desenhar. Eu consigo fazer duzentas páginas em um ano? Ah tem caras que conseguem, o meu trabalho não dá. Não é só rabiscar, tem toda uma preocupação. O “Yeshua“, no último livro, um percentual grande dele foi pensado em como que o leitor ia reagir àquilo. Naquele momento que a Maria Madalena tá ali na crucificação de Jesus, ali, ela tem uma epifania, vamos dizer assim. Ela entra num estado alterado de consciência. O leitor é transportado, é tirado daquela cena da crucificação e é levado para aquela caverna, que é uma analogia com a caverna de Platão, aquilo foi pensado no leitor. As pessoas falam: “Ah, todo mundo sabe o fim do livro, né, Laudo? O herói morre no fim”. (risso) E aí eu falei assim: “Todo mundo quer isso na história de Jesus, mas então eu vou tirar gostinho (risos) do leitor”. Eu vou fazer uma sequência em que o leitor sabe que ele está na cruz, do lado de dois caras, que ele morre, que ele fala aquelas coisas, todo mundo sabe isso. Então eu vou trabalhar com o inconsciente do leitor, já tendo isso, aconteceu isso, só que enquanto isso tá acontecendo, uma pessoa que está ali perto dele, que é a Maria Madalena, vai ter uma epifania, e ela vai entrar num outro estado onde vai existir uma analogia entre a igreja católica e as adorações, e o que realmente você tem que buscar. Quando eu pensei nisso, no mesmo momento veio essa ideia de Platão, que é fazer essa analogia dos caras dentro da caverna, não estar enxergando a realidade. Achei essa ideia tão diferente e ao mesmo tempo eu fiquei meio preocupado com isso. No primeiro momento, houve apenas essa brincadeira: eu não vou dar o gostinho ao leitor de ver Jesus morrer. De uma maneira que se eu contar pro leitor que acontece isso, eu vou estar entregando, eu estrago a leitura da obra. Técnica, eu não vou fazer isso agora, porque eu quero fazer isso, e isso, isso, isso. Tem que ter esse trabalho, tem que ter esse trabalho.

Brão em off: Eduardo Damasceno sobre a mutação que suas obras sofreram.

Eduardo Damasceno: A gente começou a pensar que a gente queria fazer uma ficção científica. Aí um dia o Lipão falou: “Nossa, sonhei com um menino na frente do espelho. Ele tinha um buraco negro na barriga”. E a gente começou a conversar, mas porque que ele tem um buraco negro na barriga, tal? E virou o “Achados e Perdidos“, ou seja, não tem nada de ficção científica. No “Cosmonauta Cosmo” a gente pensou não necessariamente fazer um quadrinho para criança, mas fazer um quadrinho que não tivesse nenhum tipo de restrição. Porque o “Achados e Perdidos” foi muito legal, e a reação das crianças foi muito legal. Aí os pais sempre perguntavam: “Ah, as crianças podem ler isso aqui?” aí eu falava “pode! Tem uns dois ou três palavrão”. Aí eu falei, “ah, quer saber? Vamos fazer um livro que não tem nem dois ou três palavrão para não ter que não falar nada para os pais, só deixar os meninos levar o livro?” Só que a gente não sabia o que, só ficou na cabeça. Aí num caderno de esboço meu, desenhei um menininho, um astronauta, e escrevi cosmonauta cosmo, assim do lado, e ele falou “Pô! Cosmonauta cosmo, ta aí, vou fazer essa história aí!” e aí a gente fez. O “Quiral” já é um universo que a gente tem todo pensado, são sete livros e tal, só que não ia dar tempo de fazer isso, e falamos ah, vamos contar histórias então dentro desse universo? Vamos. Aí a gente fez o “Quiral” que é uma história dentro desse universo que a gente já pensa para uma coisa maior.

Brão: Eu comecei a escrever dia 15 de agosto e só um mês depois, no dia 08 de setembro, que eu tive a ideia de colocar uma característica que é tão marcante na história que é o fato da Eunice gostar tanto de fotografia, e só então que eu tive a ideia de colocar essa característica no personagem.

Ricardo: E que é um link que vai conduzir para o desfecho da história, né?

Brão: Porque seria muito vazio ter uma história que não tivesse nenhuma ligação com isso, e no final , aparecesse uma foto lá do nada. Então eu tinha que construir todo esse percurso para que no final fizesse sentido. Então por isso que a Eunice tem essa característica.

Paulinho: o legal do avô não gostar de foto e ela não tirar foto dele na última cena, é bem interessante também.

Brão: Isso, respondendo sua pergunta anterior, é uma característica de fato do meu avô.

Paulinho: Ah é?

Brão: Ele não gostava de ser fotografado. A gente tem algumas fotos dele. Ele gostava de fotografia, mas ele gostava pouco de retratos. Ele não gostava de aparecer em vídeos… então em alguns aniversários que tem filmagens, a gente vê que ele tá no fundo assim da cena e começa a sair, começa a entrar debaixo da mesa (risos). Essa é uma característica real do meu avô.

Ricardo: Muito bem, agora temos uma HQ sobre ele, né? Vai puxar teu pé à noite, Brão. (risos)

Brão: Vai, vai sim (risos).

Ricardo: Muito bem, amigos. Esse aqui foi o segundo episódio da série de cinco programas sobre a HQ “Reparos” do Brão Barbosa. A gente está comentando aqui semanalmente os bastidores da produção do álbum e também do fazer quadrinístico. Bonito, né? “Fazer quadrinístico”. Carnasiano isso, quase. Muito bem, na semana que vem a gente vai voltar para falar de mais detalhes da produção e dessa vez, ali do processo mesmo de se botar uma HQ de pé. A gente espera que você já tenha lido, né? Porque senão você se ferrou, né? A gente deu um monte de spoiler! (risos)

Paulinho: E se você só leu a versão digital, tá na hora de comprar a física também.

Ricardo: Cria vergonha na cara, né velho? Põe a mão ali no papel, tato, é importante.

Paulinho: O cheiro.

Ricardo: O cheiro, exatamente.

Paulinho: Papo de velho. (risos)

Ricardo: braobarbosa.com/reparos e na semana que vem a gente volta pra falar sobre o processo de produção, o tempo que leva, capa, cor, todos esses detalhes saborosos ali, especialmente para quem curte quadrinhos. Muito obrigado, Paulinho Degaspari pelas suas brilhantes intervenções.

Paulinho: É nóis.

Ricardo: Certo, Brão Barbosa, você também sempre muito bem vindo no seu próprio podcast.

Brão: Pô, que honra.

Ricardo: É isso aí, então semana que vem a gente volta. Até!